Por Thaynara Siqueira Baumgartner*
Recentemente veio à tona novamente a tramitação de projeto de lei na Câmara dos Deputados sobre a liberação de caça esportiva no Brasil, em todo território nacional. Além de uma prática cruel, esse projeto de lei beira a inconstitucionalidade. Por quê?
Primeiro pelo mais óbvio: se aprovada, onças, macacos, veados e outros animais da fauna brasileira estarão em risco real. De acordo com o autor do projeto, o deputado Nilson F. Stainsack (PP-SC), “a proibição da caça no Brasil não parece oferecer ganhos práticos em relação à conservação das espécies e manutenção de habitats.”
Mas quais são os ganhos práticos da liberação da caça no Brasil? Qual o embasamento científico que o faz ter esse posicionamento?
Eu respondo: NENHUM. Só o fato do citado deputado achar que “não parece oferecer ganhos” mostra o quão falta estudo e argumentos para tentar justificar prática tão arcaica.
Qual o objetivo da liberação da caça esportiva?
Esse PL tem voltado a ser debatida utilizando como manobra de publicidade uma expressão recorrente: o “manejo de fauna”. O fato, porém, é que o projeto de lei vai totalmente contra qualquer teor ambientalista ou de conservação do ambiente natural. O que ela pretende regulamentar é a caça esportiva de animais nativos silvestres no Brasil por puro e simples prazer de matar.
No fim das contas, pode acabar sendo uma pá de cal no que existe de políticas públicas de conservação ambiental.
Neste contexto, a única forma de caça que poderia ser debatida é a caça por subsistência. Ainda assim, nela o manejo deve ser planejado regionalmente e acompanhado – pesquisadores recomendam que isso seja levado em conta somente para populações tradicionais da Amazônia, e que isso é impensável e absolutamente impraticável no resto do Brasil.
Como deveria funcionar o manejo da fauna
Como vimos anteriormente, este projeto de lei para liberar a caça esportiva tem como argumento principal o “manejo da fauna”. Mas como funciona isso?
Primeiro de tudo, um manejo de fauna é definido a partir de estudos qualitativos e quantitativos baseados na dinâmica populacional de determinada espécie por determinada região. Neste processo, leva-se em conta seu nível trófico, emigração e imigração de indivíduos, nicho ecológico e até mesmo estudo genético e diversos outros fatores.
São anos de trabalho de pesquisa e dados coletados por profissionais da área para definir toda a ecologia de uma população, uma comunidade, um ecossistema. É após tudo isso, e SOMENTE APÓS TUDO isso, é possível avaliar se determinada espécie deve ser subjugada a
uma determinada técnica de manejo de fauna (e diversos especialistas defendem outras formas de manejo de fauna alternativas à caça).
Não é algo simples. Alguns estudos já existentes no Brasil, porém, já demonstraram que nossa fauna silvestre está em declínio por diversos motivos, como ocupação humana, desmatamento e caça e tráfico de animais e produtos derivados destes. Ou seja, ao invés de se criar mecanismos legislativos a fim de incentivar programas de conservação de espécies, o PL que tramita na Câmara sugere o oposto
É bom lembrar: a caça esportiva ou para venda de produtos advindos desta atividade causou a morte de mais de 23 milhões de animais entre o período de 1904 a 1969 nos estados de Rondônio, Acre, Roraima e Amazonas, segundo artigo publicado na Science Advance.
Deste total, contabilizando espécies de grandes mamíferos, inclusive de onças-pintadas, que até hoje não conseguiu recuperar suas populações.
Mesmo com leis, animais seguem em risco de extinção
Existem diversas leis que falam sobre proteção da vida silvestre: lei de crimes ambientais (9605/98), lei de proteção à fauna (LEI N° 5.197, DE 3 DE JANEIRO DE 1967), diversas leis regionais (estaduais e municipais), declaração Universal dos direitos dos Animais da Unesco (1978), entre outras. Vale lembrar que, em caso de contrapontos entre as leis, no direito ambiental prevalece a lei mais restritiva e de maior proteção. E ainda, mas não menos importante, o bom senso e a implicação das teorias de bem estar animal.
Mesmo com todas estas leis, um estudo desenvolvido na revista Animal Conservation concluiu que houve a extinção local de animais de grande porte devido a caça, mesmo sendo proibida por lei. O biólogo Ricardo Bovendorp fez parte da equipe da UNESP responsável pelo estudo de diversos mamíferos em áreas de mata atlântica, acompanhando principalmente a dinâmica populacional de grandes mamíferos.
Nota-se também a fragilidade do bioma Mata Atlântica por conta do declínio das espécies.
O que tudo isso interfere na sua vida?
Em outro estudo publicado na revista Science Advances observou-se que o declínio de populações interfere diretamente na capacidade de retenção de gás carbônico feito pela floresta atlântica. A caça gera um efeito cascata de apenas pontos negativos – partindo da premissa que o Brasil não tem possibilidade de fiscalização e controle da atividade, não há nenhuma dúvida que esse cenário apenas vai gerar mais caos ambiental.
Em diversos países onde a caça é permitida, existe o risco de extinção de 301 espécies de mamíferos, de acordo com artigo publicado na Royal Society Open Science. De diversos países avaliados, somente uma espécie em um país tem população controlada pela caça: o veado-galheiro, nos EUA. Ou seja, fica tudo na teoria, e o monitoramento da atividade não ocorre em mais de 99% dos casos.
As pessoas que são a favor dessa PL esquecem-se do efeito de cascata trófica que determinada espécie pode desencadear em um ecossistema. E de um jeito ou de outro vai atingir a nossa espécie: vamos quebrar interações ecológicas existentes e gerar outras que não deveriam existir.
Tal projeto de lei proposto parte do pressuposto que o órgão federal ambiental definirá quais espécies poderão ser caçadas, local, quantidade de animais por caçador e fazer a fiscalização de tudo isso. Qual o tipo de amostragem que será utilizada para verificar essas populações que estão literalmente na mira dessa PL? Será monitoramento por tempo ou por captura? Quem serão os entes fiscalizadores? Como será feita a punição aos que desrespeitarem a lei? Qual a periodicidade dos estudos e levantamentos?
Histórico recente
Segundo o Índice Planeta Vivo 2020, entre os anos 1970 e 2016 houve uma redução média de 68% nas populações monitoradas de mamíferos, aves, anfíbios e peixes causada principalmente por fatores como obras de infraestrutura, agricultura e pesca, entre outras práticas de produção que pressionam ambientes naturais.
Faça um exercício comigo: imagine liberando a caça, onde estes números vão parar?
Como ocorre em países em que a caça é liberada, na hora da caça o caçador atira no que passar na frente; no Brasil já tem gente matando cateto falando que é javali.
E no caminho que segue essa carruagem, fica cada vez mais claro que seremos sobrepujados pelos problemas que estamos criando e pelos problemas que elegemos. E o custo será de vidas, humanas e não humanas.
*Bióloga e professora, Thaynara é sócia da Mantiqueira Ecoturismo e diretora de Capacitação e Sustentabilidade da Abeta. Acredita que é preciso conhecer a natureza para poder para amar, cuidar e preservar, sempre pensando no eco e tentando minimizar o ego. Condutora ambiental de caminhadas e passeios 4×4, ministra cursos em ecoturismo, educação ambiental e turismo sustentável. É instrutora de cursos de manejo de animais peçonhentos, hiking e turismo fora de estrada