Em 2014, André Ilha (montanhista com pelo menos 4 décadas de experiência) nos brindou com artigo provocador sobre o direito ao risco, com ênfase nos esportes de aventura, e de forma assertiva, faz menção à legislação atinente ao assunto e vigente à época.
Antes de entrar Legislação, matéria dos advogados, juízes, procuradores, promotores de Justiça e tantos outros a serviço da lei, gostaria de voltar a algumas premissas dos esportistas, e de como se percebe, aceita e gerencia risco.
Nosso amigo André Ilha é montanhista, eu sou instrutor de mergulho e um apaixonado pelo mergulho em cavernas – um bom esporte para se falar de risco, seus limites, aceitação e direitos.
Eddie em mergulho solo /arquivo pessoal
Em 1995, já instrutor de mergulho recreacional (desde 1993) e finalizando meu treinamento como instrutor de mergulho em cavernas, fui apresentado a uma “modalidade” de mergulho bastante comum no ambiente dos mergulhadores de caverna, mas que para mim, naquele momento de recém treinado, me causava certa estranheza e até algum desconforto – SOLO DIVING.
Isso mesmo, você não leu errado – SOLO DIVING, ou em outras palavras, mergulhar sozinho em uma caverna inundada.
Ora, total contrassenso à máxima nunca mergulhe sozinho, ao sistema de duplas tanto enfatizado no intenso treinamento dos mergulhadores de caverna. Mas antes de criticar, tentei entender algo que me acompanharia desde aqueles idos de 1995 até os dias atuais, mergulhar solo.
Em uma tradução livre, meus instrutores e os mais ávidos exploradores de cavernas inundadas da época, comentavam durante uma recarga, antes de um novo mergulho “ANTES SOLO, DO QUE MAL ACOMPANHADO”; NINGUÉM precisa estar disposto a correr o mesmo risco que eu estou disposto, e por último, mas não menos importante, estes mergulhadores eram a vanguarda do mergulho em cavernas, muitos deles haviam desenvolvido equipamentos, configurações, ou filosofias de mergulho que ou levavam seus nomes, ou foram batizadas por eles.
As explorações mais extensas, complexas e desafiadoras tinham marcadores direcionais (setas) com seus nomes indicando direção longínqua da saída a partir daquele novo ponto recém conquistado. Não eram super-homens, mas seguramente estavam muito além do praticante regular. Possuíam equipamentos sempre em perfeitas condições de uso, dominavam as melhores técnicas e práticas e além de exímios planejadores de mergulhos com as contingências necessárias, tinham a capacidade de seguir o que fora planejado e uma grande capacidade de gerenciamento de emergências.
Romeu Dib e Eddie Dineli entrando na água em mergulho em caverna /arquivo pessoal
Aperfeiçoar a qualificação e assumir a própria segurança
Estes mergulhos não eram atividades turísticas, não eram produtos comerciais, eram a materialização da “síndrome de Star Trek” – estar onde ninguém jamais esteve.
O advento do solo diving trouxe uma oportunidade para as agências de treinamento, que passaram a sistematizar os requisitos essenciais para se “mergulhar sozinho” e os transformaram em um programa de treinamento – não para permitir que mergulhadores em operações turísticas, comerciais portanto, mergulhem sem a presença de seu duplas, mas para que estes mergulhadores tenham verdadeiramente melhor capacidade de planejamento, de gerenciamento de riscos e acabem sendo melhores duplas. Sem intuito de propaganda nem de promover uma certificadora em detrimento de outra, apresento o que está no site de algumas das certificadoras de mergulho que oferecem treinamento de mergulho “solo”.
RAID Independent Diver: Este curso ensina mergulhadores RAID certificados com pelo menos 100 mergulhos registrados, três habilidades adicionais principais para que eles sejam competentes e confiantes mergulhando sem o suporte garantido de um parceiro. Essas habilidades são gerenciar um “stage ¹” ou um “bailout bottle ²”; implantar um “DSMB ³”; gerenciar com segurança e eficácia várias peças de equipamento de backup. O curso Independent Diver é um programa de mergulho recreativo sem descompressão para mergulhadores de circuito aberto… nada mais.
O curso da SSI Independent Diver nos traz como parágrafos iniciais: Autossuficiência subaquática. A maioria dos mergulhadores gosta de mergulhar com seus amigos, pois podem compartilhar suas experiências juntos, mas manter um verdadeiro contato de amigos debaixo d’água pode ser desafiador para alguns devido às tarefas que escolhem realizar. Um ótimo exemplo disso são os fotógrafos subaquáticos e mergulhadores que caçam frutos do mar. Sim, eles podem pular na água juntos, nadar juntos, mas quando começam a parar para tirar uma foto ou olhar sob uma saliência para uma criatura potencialmente saborosa e depois outra e outra, seu amigo pode ter continuado um curto caminho e pode até estar ocupado fazendo a mesma coisa. Eles ainda estão à vista um do outro, supondo que a visibilidade esteja boa, mas agora estão fora de alcance se precisarem de assistência urgentemente.
1. “Stage” – cilindro adicional carregado clipado (pendurado) ao lado do mergulhador, pode ser com gás de fundo ou com gás de descompressão.
2.“Bailout bottle” – cilindro para emergências, carregado como “stage” mas utilizado quando há falhas no sistema principal de mergulho, particularmente quando se mergulha com “rebreathers”.
3. “DSMB” (diver surface marker buoy) marcador inflável, de formato cilíndrico, de cor laranja ou amarelo, tipicamente com comprimento entre 1,2m e 1,8m, lançado pelo mergulhador ainda no fundo, serve para indicar na superfície onde o mergulhador se encontra.
Eddie Dineli com um Veículo de Propulsão de Mergulho, ou scooter / arquivo pessoal
A PADI, em seu curso Reliant Diver nos traz: Com treinamento adequado, equipamento e a atitude certa para aceitar os riscos envolvidos no mergulho independente, um mergulhador experiente pode se envolver responsavelmente em mergulhos sem um parceiro. O mergulho autossuficiente é uma atividade de aventura que não é para todos, mas tem seu lugar. Se você tiver disciplina mental e comprometimento para aprender e seguir técnicas de mergulho autossuficiente, você reforçará suas habilidades e confiança ao mergulhar sozinho, em um par de mergulho ou como parte de uma equipe.
SDI Solo Diver: Em um momento ou outro, muitos mergulhadores se viram sozinhos durante um mergulho, seja intencional ou não. O Solo Diving da SDI é a prática de mergulho autônomo sem um “companheiro de mergulho”. O mergulho solo, antes considerado mergulho técnico e desencorajado pela maioria das agências de certificação, agora é visto por muitos mergulhadores experientes e algumas agências de certificação como uma prática aceitável para aqueles mergulhadores adequadamente treinados e experientes. Em vez de confiar no sistema de segurança tradicional de mergulho com dupla, os mergulhadores solo devem ser qualificados em autossuficiência e dispostos a assumir a responsabilidade por sua própria segurança durante o mergulho.
Resumindo, cada um a seu modo, os programas de treinamento de mergulhadores “solo”, visam formar mergulhadores mais competentes e preparados para lidar com as situações habituais de mergulho, mesmo em dupla.
Melhoria das competências, das habilidades e domínio dos equipamentos, características comuns aos esportistas de diferentes modalidades e aos operadores de atividades de turismo, em particular aos operadores de turismo de aventura.
Planejamento de mergulho / Arquivo pessoal
O que diz a legislação: esporte de aventura e radical
Em seu artigo, André menciona a legislação que define as atividades de esporte de aventura onde na resolução número 18 do Conselho Nacional do Esporte temos:
Art. 1º Que se identifique no País como:
I – Esporte de aventura: O conjunto de práticas esportivas formais e não formais, vivenciadas em interação com a natureza, a partir de sensações e de emoções, sob condições de incerteza em relação ao meio e de risco calculado. Realizadas em ambientes naturais (ar, água, neve, gelo e terra), como exploração das possibilidades da condição humana, em resposta aos desafios desses ambientes, quer seja em manifestações educacionais, de lazer e de rendimento, sob controle das condições de uso dos equipamentos, da formação de recursos humanos e comprometidas com a sustentabilidade socioambiental.
II – Esporte radical: O conjunto de práticas esportivas formais e não formais, vivenciadas a partir de sensações e de emoções, sob condições de risco calculado. Realizadas em manobras arrojadas e controladas, como superação de habilidades de desafio extremo. Desenvolvidas em ambientes controlados, podendo ser artificiais, quer seja em manifestações educacionais, de lazer e de rendimento, sob controle das condições de uso dos equipamentos, da formação de recursos humanos e comprometidas com a sustentabilidade socioambiental.
(Resolução CNE nº 18, de 9 de abril de 2007) – os grifos são meus.
Ainda em seu texto, André reforça que há práticas esportivas não formais e formais, sendo estas as reguladas pelas agremiações, e organizações esportivas com regras próprias, alguma forma de pontuação e até indicação de vencedores, quando de competições. Nas práticas esportivas informais, diz:
…” sua prática se dá de maneira espontânea: amigos que combinam sair num final de semana para fazer uma escalada, surfar ou mergulhar em algum costão submerso sem qualquer preocupação com regulamentos, tempos, pontos, e sem sentir que tenham que prestar satisfações a quem quer que seja – salvo o compromisso também expresso na norma com a sustentabilidade socioambiental. Há, também, em muitos casos, preocupação com a performance individual, onde o indivíduo procura provar para si próprio que está logrando obter (ou não) avanços nas qualidades físicas e mentais requeridas para superar um desafio natural específico.” … (pág. 2)
Neste ponto enxergo com clareza dois aspectos que aproximam a prática esportiva da atividade turística e que após as aproximar, as distanciam sob os aspectos de execução e legislação.
Expedição no Buraco das Abelhas em 2006, no Parna Serra da Bodoquena, Jardim, MS /arquivo pessoal
De esportistas para empresários de turismo
Sempre leio ou ouço que começamos como esportistas, e lentamente ao convidar nossos amigos e os amigos dos amigos para se juntarem a nós, nas atividades esportivas que tanto amamos, começamos a transição para a atividade turística (da atividade esportiva, para a comercial) e neste momento, surgem novos desafios, pois já não basta ser um bom esportista, que possui equipamentos, conhecimento técnico e prima pelas melhores práticas; neste momento precisamos nos tornar empresários.
Junto com a mudança sobre o olhar de como continuar na modalidade esportiva escolhida, mas agora com viés de atividade turística, vem todo um arcabouço jurídico que vai disciplinar as relações de consumo e estabelecer direitos e deveres do agora operador de atividade turística (ecoturismo, turismo de natureza, turismo de aventura…) dentre estas Leis, decretos e outras medidas regulamentadoras próprias da esfera legislativa, posso destacar, mas não me limitar a:
Código de defesa do Consumidor Lei 8078 de 11 de setembro de 1990; Código de Processo Civil Lei 13105 de 16 de março de 2015; Lei Geral do Turismo Lei 14 978 de 18 de setembro de 2014.
Onde entra o risco e o direito de correr risco nessa conversa? Se você chegou até aqui, esta deve ser a sua pergunta.
Com a liberdade de interpretação deste que vos escreve, quando unimos código de defesa do consumidor e código de processo civil temos que “quando se estabelece relação COMERCIAL, ao prestador de serviço é imputado o dever de cuidado, sendo uma RESPONSABILIDADE OBJETIVA”. Independente do nexo de causalidade, a responsabilidade é de quem oferece/opera a atividade adquirida.
Atividade no Cânion do Salobra, em Bodoquena, MS /arquivo pessoal
Participante assume o risco que a empresa correr
Neste momento o risco do participante se limita àquele que a empresa/operador se dispõe a correr face a sua capacidade financeira, de planejamento, de resposta/resgate e percepção de risco jurídico.
Melhorar a gestão de risco, possuir além das boas práticas o Sistemas de Gestão da Segurança, a luz da NBR ISO 21.101:2014 (Turismo de aventura – Sistema de Gestão da Segurança – Requisitos), implementado, como requer o decreto que regulamenta a Lei Geral do Turismo, seguramente além de diferenciais competitivos, aumenta a defensabilidade jurídica da empresa que oferece/opera as atividades de turismo de aventura.
Mais do que correr risco, precisamos aprender a GERENCIAR RISCO, e para isso, conhecimento, técnica, equipamentos, habilidades e planejamento são essenciais.
Nas atividades esportivas, guardados os limites Legais e o amadurecimento Jurídico de cada País e de sua População, cada praticante escolhe o nível de risco que se sente confortável e está disposto a correr, desde que haja amparo Legal para tal.
Na atividade turística, e em especial no turismo de aventura, o visitante quer a sensação de risco, mas acredita que os riscos estão controlados por pessoas verdadeiramente competentes.
Bibliografia:
Código de defesa do consumidor https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm acessado em 17/03/2025
Código de processo civil https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm acessado em 17/03/2025
Decreto 7381 de 02 de dezembro de 2010 – Regulamenta a Lei no 11.771, de 17 de setembro de 2008, que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo, define as atribuições do Governo Federal no planejamento, desenvolvimento e estímulo ao setor turístico, e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7381.htm acessado em 17/03/2025
Ilha, André. Direito ao risco, 2014, 11p – Disponível em https://fememg.org.br/wp-content/uploads/2021/06/o-direito-ao-risco.pdf acessado em 17/03/2025
Lei Geral do Turismo https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14978.htm acessado em 17/03/2025
PADI Self Reliant Diver https://store.padi.com/en-us/ns/courses/self-reliant-diver/p/self-reliant-diver/ acessado em 17/03/2025
SDI Solo Diver Course https://www.tdisdi.com/sdi/get-certified/solo-diver-course/ acessado em 17/03/2025
SSI Independent Diver https://divenow.co.nz/ssi-independent-diver-course/ acessado em 17/03/2025
RAID Independent Diver https://diveraid.com/independent-diver-overview/ acessado em 17/03/2025