A cultura de montanha vai além do ato de subir grandes elevações

Antes de explicar o que seria cultura de montanha, gostaria de definir montanhismo. Vocês conhecem a definição? De forma simplória, me diriam: é o ato de subir montanhas. É quase isso, porém não é tão simples assim.

Para entendermos o que é montanhismo precisamos conhecer a relação do homem com as montanhas desde os primórdios. Subir montanhas é intrínseco ao ser humano. Existem diversos relatos milenares que apontam  vestígios humanos em várias montanhas “virgens” pelo mundo, inclusive altas montanhas. Então, não podemos determinar onde nasceu essa paixão! 

Essa prática também era associada à expansão territorial no início das civilizações, mas a partir do momento que o homem desenvolve um novo olhar para o simples ato de subir as montanhas, tornando-o um hobby e difundindo a prática por meio de técnicas, surge o que eu chamo de movimento do montanhismo, que teve como “berço” a Europa. 

Em 2018 a França, Itália e Suíça protocolaram na UNESCO um pedido de tornar o nome alpinismo – uma das modalidades do montanhismo, ato de subir montanhas nevadas ou rochosas nos Alpes – Patrimônio Imaterial da Humanidade, sendo reconhecido no ano seguinte pela organização.  O alpinismo é uma das modalidades do montanhismo, sendo definido o ato de subir montanhas nevadas ou rochosas nos Alpes. Segundo esse estudo dos três países teve seu início em 1786 com a primeira ascensão ao Mont Blanc. 

E o montanhismo no Brasil?

Em referência ao movimento do montanhismo no Brasil atualmente, mostrarei como exemplo o que vem acontecendo no Rio de Janeiro. Existe um “guia” que organiza trilhas “gratuitas” e consegue reunir centenas de pessoas para subir uma montanha, isso mesmo, centenas de pessoas em um único grupo! Então fica a questão: essas pessoas estão praticando o montanhismo?

Eu entendo que todos ou a maioria têm o mesmo objetivo, subir uma montanha, mas não estão praticando o montanhismo. Primeiro, pela falta dos princípios básicos do Mínimo Impacto que seria “Não deixe rastros” (Leave no Trace) e segundo, porque esses indivíduos em um grupo gigante como esse não conseguirão se conectar à Natureza, papel fundamental na prática do montanhismo.

Frequentemente escuto a seguinte indagação: você passa por vários perrengues para chegar ao cume, quando chega, festeja e volta, qual a graça nisso? Costumo dizer que o montanhismo não é apenas chegar ao cume de uma montanha e sim, toda a sua trajetória… é o ato de pesquisar a trilha em livros, internet e relatos de amigos; é se preparar fisicamente para uma trilha difícil; é despachar sua mochila cargueira que você é apaixonado em um avião ou ônibus e ficar a viagem toda preocupado com ela; é fazer a “loucura” de deixar seu carro no final de uma longa travessia e pegar um ônibus para se deslocar até o início da trilha e depois de horas ou dias, chegar no final da aventura e “resgatar” seu veículo.

Montanhismo para mim é parar em um mirante e ficar por um bom tempo “na caixinha do nada” apreciando a paisagem; é ficar impressionado com a força de uma formiga carregando uma folha muito mais pesada e maior do que ela; é ficar deslumbrado com a perfeição de uma teia de aranha no meio da trilha. É um estilo de vida onde você se preocupa com o ambiente e as pessoas à sua volta, tornando assim um ser humano com mais amor ao próximo. 

Mas afinal, o que é cultura de montanha?

Lembram da frase que sempre escuto? Então, esse tipo de questionamento mostra o quanto a cultura de montanha ainda é incipiente no Brasil. Cultura de montanha não é a mesma coisa que montanhismo. Analisemos o relato a seguir:

Em  Setembro de 2018 o incrível filme de escalada “The Dawn Wall” , fez sua estreia no Brasil com uma única sessão em algumas capitais, não lembro ao certo, mas acredito que paguei R$ 35,00 pelo ingresso. Na época, colegas e amigos montanhistas falaram que não gastariam esse dinheiro porque em breve assistiriam ao pirata na internet (hoje o filme está na Netflix). Alguns amigos justificaram a minha ida por eu ser cineasta outdoor, sim, pois é ótimo unir o útil ao agradável, mas não somente, o meu pensamento ia além, fomentar a cultura de montanha na minha cidade.

Outro exemplo é a reprodução de livros de escaladas através de fotocópias ou fotografias, o que no Brasil não é crime quando utilizadas para fins pessoais, mas, com isso, não contribuímos para a idealização de novas criações, visto que os autores dependem do levantamento de verbas a partir da vendagem. Certa vez, entrevistei o André Ilha, um grande montanhista e escritor de vários livros de escalada. Nesse bate-papo ele comenta sobre o árduo trabalho de produzir um livro de aventura no Brasil, onde infelizmente não é valorizado e muito menos rentável e a única coisa que move o autor é a paixão pelas montanhas. Sou produtor de conteúdo outdoor do canal Dicas de Trekking e SPOT Brasil no YouTube, por isso, sempre estou investindo em livros de aventura, mas o intuito também é ajudar a difundir a cultura de montanha no Brasil. Então, o montanhista investe uma grana nos equipamentos de escalada, e não quer comprar um livro de escalada de R$ 60,00 (média) para incentivar a cultura de montanha.

Guilherme Cavallari, escritor e aventureiro profissional, sempre percorre de bicicleta milhares de quilômetros em ambientes naturais, principalmente em áreas remotas do planeta, para servir de inspiração para os seus futuros livros de cicloturismo e montanhismo. Em uma de suas aventuras, percorreu 3.633 Km, atravessando toda a Mongólia e escreveu o livro intitulado “Transmongólia” narrando essa magnífica história e na época do lançamento, fez um crowdfunding (vaquinha on line), com o intuito de levantar verba para a impressão do livro. Apesar de não praticar cicloturismo e, a princípio, a Mongólia não estar em meus planos de viagem, contribuí com o crowdfunding para expandir a cultura de montanha no país. 

Seguindo essa concepção, vou tocar em um ponto polêmico… eu não compro equipamentos de montanhismos em sites estrangeiros porque gostaria de ver mais lojas inaugurando aqui e não fechando, como tem acontecido. Claro que já comprei em viagens internacionais! Concluindo, cultura de montanha é o movimento de estudar e praticar o montanhismo, consumindo produtos ou serviços que fomentem esse estilo de vida em seu país. 

Todo montanhista pratica a cultura de montanha? Tenho minhas dúvidas… e você?

Referências:

https://ich.unesco.org/en/RL/alpinism-01471

https://ich.unesco.org/en/decisions/14.COM/10.B.12

https://ich.unesco.org/en/10b-representative-list-01098#top

Abelardo Walsh
Abelardo Walsh

Abelardo Walsh cresceu imerso em experiências outdoor, que moldaram sua vida e carreira. Com 25 anos de atuação no audiovisual e montanhismo, produz conteúdos desde 2020 para SPOT Brasil e para seu canal "Dicas de Trekking", além de atuar como documentarista pela Walsh TV em projetos nacionais e internacionais.

De 2022 a 2024, foi curador e sócio do Rio Mountain Festival, onde avaliou mais de 300 filmes de esportes de montanha anualmente. Dirigiu a fotografia da série "Trilha Transcarioca" (Globoplay) e foi cinegrafista de escalada do vídeo oficial Francês da passagem do bastão olímpico no Brasil. Recentemente, lançou seu primeiro filme (40 minutos), "Medos e Mitos", exibido nos festivais Rocky Spirit e Rio Mountain Festival.