Já parou para pensar que, ao trilharmos as belezas naturais do Brasil, estamos entrando no lar de inúmeras outras vidas? Nesta coluna, quero te convidar a ir além da contemplação da paisagem e a despertar para as incríveis riquezas da nossa fauna e flora (e sim, vamos falar dos fungos também!). Mas, para essa experiência ser transformadora e respeitosa, precisamos conversar sobre limites – os nossos e os do mundo selvagem ao qual pertencemos apenas como visitantes.
Mas por que essa preocupação com os limites é tão essencial? Simples: quando a curiosidade nos move a novas experiências, nossa natureza humana se assemelha à de uma criança de 4 anos, que deseja tocar e ter tudo. É crucial, portanto, estabelecermos fronteiras claras.
A velha máxima “ninguém preserva o que não conhece” pode soar clichê, mas encerra uma grande verdade. Contudo, no turismo de natureza com foco na OBSERVAÇÃO de TODO TIPO DE VIDA silvestre (guarde bem esse detalhe!), o desafio central é: até que ponto devemos conhecer?
Essa interação entre humanos e vida silvestre é ancestral, remontando aos tempos em que nossos antepassados eram primatas com cauda – ou seja, essa história não é de hoje. Contudo, atualmente, nossa espécie, muitas vezes distante do mundo natural, tende a ver essa vida selvagem como algo exótico, um universo à parte. E é justamente essa interação entre nós, animais humanos (assunto fascinante para outro momento!), e as outras formas de vida que está no cerne da observação da vida silvestre.
A interação errônea pode causar sérios problemas
Mas nem sempre essa interação flui bem. Às vezes, o turismo pode acabar causando sérios problemas para os bichos e para nós mesmos. E há diversas facetas nessa questão.
Desde o início do turismo, a perturbação do habitat com a construção de hotéis, estradas e outras infraestruturas pode fragmentar e destruir os lares dos animais. Imagine só ter sua casa invadida! E não para por aí: o tipo de construção (cheia de vidro ou luzes acesas a noite toda, por exemplo) também causa impactos, assim como a mudança de comportamento e o estresse dos bichos. A presença constante de turistas, o barulho nas trilhas, uso excessivo de playbacks para observação de aves e até mesmo a tentativa de alimentar os animais podem deixá-los estressados, alterar seus hábitos alimentares e de reprodução e, crucialmente, torná-los dependentes da gente – especialmente com essa mania de dar comida para os bichos! É exatamente aí que reside o grande perigo!
Aves que colidiram em vidros, imagem por Kenneth Herdy / NYC Audubon ¹
Essa forçada interação ecológica ao oferecer alimento pode ser diretamente prejudicial à saúde humana também, desencadeando a transmissão de doenças de origem zoonótica. Calma, vou explicar o que isso significa!
A biodiversidade silvestre é, entre muitas outras coisas benéficas, uma barreira de proteção entre nós e muitos patógenos (organismos que podem nos causar doenças). Quando forçamos a interação com animais silvestres, pode haver uma troca desses patógenos, que são inofensivos nos bichos, mas perigosos em nosso organismo, por isso a origem zoonótica: do animal para a gente.
Esse “pulo” do patógeno entre espécies diferentes é chamado de SPILLOVER ou transbordamento, que nada mais é do que a capacidade desse organismo sobreviver em diferentes hospedeiros. A grande questão é que, nos bichos silvestres, esses patógenos geralmente não causam problemas, mas ao chegarem ao organismo humano… PÁ! Doença à vista.
E temos diversos exemplos disso, como a doença do vírus Nipah, SARS, MERS, COVID e raiva. Um exemplo recente e alarmante (primeiro trimestre de 2025) registrou 2 casos de pessoas que contraíram raiva por alimentarem macacos saguis em pontos turísticos, e uma dessas pessoas veio a óbito. Percebe o risco dessa interação? E além do perigo de nós contrairmos doenças, há o risco de transmitirmos nossos males e causarmos problemas de saúde aos animais. Convenhamos, a alimentação silvestre deles, em seu ambiente natural, é infinitamente superior a qualquer coisa que oferecemos, não é mesmo? Essa alimentação inadequada oferecida pelos turistas pode causar sérios problemas de saúde nos bichos.
Acima título da matéria ² publicada no site do Conselho Regional de Medicina Veterinária do RJ, em fevereiro de 2025. Foto de um Sagui em Itatiba, SP, por Thaynara Siqueira
E tem mais: essa prática de dar comida para os bichos é caracterizada como CEVA E É PROIBIDA POR LEI! Ou seja, ao fazer isso, você está cometendo um crime, com base nas portarias ambientais estaduais e na Lei Federal nº 9.605/1998 ³ , que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e no Decreto Federal nº 6.514/2008, ⁴ além da Lei Federal de proteção à fauna e os dispositivos estaduais e portarias do ICMBio e IBAMA.
Sem contar que, infelizmente, o turismo também pode impulsionar o comércio ilegal de animais silvestres, com animais sendo retirados de seus habitats para serem vendidos como “lembrancinhas” ou mantidos em cativeiro em condições terríveis. Ou mesmo aqueles “serviços” de fotos com animais no colo, vestidos com roupas. Gente com jacaré como bebê no colo, capivara usando roupa ou laço na cabeça, achando engraçado o quati revirando bolsas e o macaco pedindo comida. O que tem de natural nisso?
Arte apresentada em artigo de Christine Kreuder Johnson, Peta L Hitchens, Tierra Smiley Evans e outros autores ⁵
Boas práticas, educação e pesquisas: há bons caminhos a seguir
Mas nem tudo são más notícias! Há avanços e sinais de esperança. Apesar dos desafios, muita gente e diversas iniciativas estão trabalhando para mudar essa realidade e promover um turismo mais responsável com a fauna.
O ecoturismo e o turismo de observação responsável são, cada vez mais, o foco em formas de turismo que valorizam a natureza e buscam minimizar o impacto. A observação de animais, quando feita com guias experientes e seguindo regras claras, pode gerar renda para as comunidades locais e conscientizar os turistas sobre a importância da conservação. Você conhece os bichos e as plantas sem danificar o lar deles!
Tudo isso acompanhado de regulamentação e boas práticas. O Brasil e muitos outros países e organizações estão desenvolvendo normas mais rigorosas e diretrizes para o turismo em áreas naturais, incluindo manter distância dos animais, não alimentá-los e limitar o número de visitantes, principalmente em locais sensíveis da biodiversidade.
Mas tudo começa com a educação, tanto dos profissionais quanto dos turistas. Informar a todos sobre como se comportar de forma respeitosa com a fauna é fundamental. Campanhas de conscientização e a presença de guias bem informados fazem toda a diferença. E quando as comunidades locais se beneficiam diretamente do turismo de observação da fauna (OBSERVAÇÃO hein, só observar mesmo!), elas se tornam importantes aliadas na conservação, gerando empregos e renda que incentivam a proteção dos animais e seus habitats.
E o melhor de tudo é que o turismo responsável é um braço forte da pesquisa científica, essencial para entender os impactos do turismo na fauna e desenvolver estratégias de manejo mais eficazes. O monitoramento das populações animais e de seu comportamento ajuda a identificar problemas e avaliar o sucesso das ações de conservação. Isso é conhecido como ciência cidadã!
Então, quando for passear ou oferecer um serviço de turismo de natureza, lembre-se de:
• Pesquisar e escolher operadores de turismo responsáveis.
• Respeitar as regras e orientações dos guias: eles sabem como garantir a sua segurança e a dos animais.
• Manter uma distância segura dos animais: observe-os de longe, sem tentar interagir ou alimentá-los.
• Não fazer barulho excessivo ou ficar usando playbacks: o silêncio ajuda a não perturbar os animais.
• Não deixar lixo na natureza: leve tudo o que trouxer e, se possível, recolha o lixo que encontrar.
• Não comprar produtos derivados de animais silvestres: apoie o comércio legal e sustentável.
• Informar-se sobre a fauna local: quanto mais você souber sobre os animais, mais irá valorizá-los.
• Priorizar a conservação: o bem-estar da fauna deve ser a prioridade máxima.
• Desenvolver um código de conduta claro e divulgá-lo aos turistas.
• Capacitar os guias: eles são peças chave na educação dos turistas.
• Promover o turismo de observação responsável e outras formas de ecoturismo.
O turismo pode ser uma força poderosa para a conservação da fauna, desde que seja planejado e conduzido de forma responsável e com respeito pela natureza. Vamos conhecer nossas riquezas, mas sem querer perturbá-las ou controlá-las, que tal? E deixo para reflexão essa tirinha do Calvin & Haroldo:
Legenda: Calvin e Haroldo/Bill Watterson
Não vamos prender arco-íris, combinado?
Referências:
¹ Citação do artigo referente à foto dos pássaros, de Kenneth Herdy da NYC Audubon, instituição que participou do exame sobre os resultados do estado de mais de 3.000 pássaros feridos em colisões de edifícios e levados a reabilitadores na época: New Study Confirms Building Collisions Kill Over One Billion Birds Annually in U.S. | NYC Bird Alliance
² Matéria do CRMV-RJ sobre a interação com sagui: Menos de um mês após a morte de uma mulher que contraiu raiva humana ao ser mordida por um sagui, outra pessoa contraiu a doença pelo mesmo motivo.
³ Lei Federal nº 9.605/1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente: L9605
⁴ Decreto Federal nº 6.514/2008: Decreto nº 6514
⁵ Artigo de Christine Kreuder Johnson, Peta L Hitchens, Tierra Smiley Evans e outros autores com o seguinte título traduzido: “Propriedades de transbordamento e pandemia de vírus zoonóticos com alta plasticidade do hospedeiro”: Spillover and pandemic properties of zoonotic viruses with high host plasticity – PubMed